sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A morte não é o problema

    



    Hoje a fala de uma conversa aleatória com um professor me fez questionar certas questões do tipo intocável e delicadas. O que ele simplesmente nos disse foi: "Médico não gosta de falar de morte". Médico, enfermeiro, padeiro, você e eu. E por que falar sobre a morte é tão complicado? Cai um pedaço da língua ou temos medo? Temos medo. Temos certo receio de citá-la nas conversas sobre a vida, nos tratamentos médicos, nas conversas familiares. A gente não dá a dimensão para a morte até que ela afete pessoas próximas e amadas, só que passado o impacto da perda, diminuídas as saudades, esquecemos facilmente da brevidade dos dias e vivemos e planejamos como se fossemos imortais. Primeiro, não temos tanto tempo. Segundo, vamos morrer, pessoas morrem como pessoas nascem.
     Há um sério problema quando o assunto é morte. Nos corredores e cotidianos hospitalares você ouve muito sobre como curar o paciente, qual o tratamento mais adequado, porém qual é a morte mais adequada? Até que ponto o tratamento trata? Infelizmente estamos em uma cultura que artificializa tudo, inclusive a morte. O parto já não é natural, por que a morte seria? Nascemos de parto cesáreo e morremos entubados e sozinhos em um leito de UTI. Morremos depois de passarmos dias e dias enfiados em um hospital passando por tratamentos agressivos, invasivos, que podem sim prorrogar os dias, mas nos afastam do convívio familiar dos nossos últimos dias e dos prazeres antes do tratamento usufruídos. Não estou desmerecendo os tratamentos médicos, a intervenção de medicamentos e demais ferramentas em prol da saúde, seria estranho eu, futura médica, desprezar o conhecimento que a medicina vem me propiciando. Mas talvez a minha experiência particular, no intercurso da doença e morte de minha mãe, pude analisar melhor até que ponto há tratamento e até que ponto há vida.
     Minha mãe morreu não no dia 02 de dezembro de 2010, morreu quando o tratamento dela desmereceu suas dores, desmereceu a vida que ainda restava, quando ela deitou na cama do seu quarto e percebeu que nem mais os cabelos poderia pentear. Quem se importou com isso? Eu não me importei. Ninguém se importou no resto de vida que ela tinha, se importaram em quantos dias o tratamento poderia prorrogar sua vida, mas aquilo era vida? Ninguém perguntou se ela gostaria de comer um pedaço de jaca ( a fruta que ela amava). Ninguém quis dar o último pedaço de jaca da vida dela porque ninguém queria aceitar que ela estava no seu findar dos dias. Quando ela entrou no hospital, naquele conturbado 30 de novembro de 2010, eu sabia que ela estava partindo. Ela não queria ficar lá, ela pediu para ficar em casa, enquanto ainda restava uma pequena porção de consciência. Porém, não, ela precisava de tratamento. A gente precisava ver o remédio entrando por suas veias e precisava do desespero de ver que ela não tinha mais função renal pela sonda vesical completamente vazia. Os órgãos foram paralisando, sua respiração mais ofegante e mais distante, o coração cada vez batendo mais rápido e se despedindo a cada segundo que passava. No soro doses e doses da morfina que ela negou tomar por desconhecimento e teimosia. A cada visita médica aquele olhar de desesperança e no fundo me falando que não havia mais jeito. Estávamos lá, trancafiados em um quarto de hospital, esperando da boca pra fora algum milagre e do coração pra dentro o último suspiro dela. Lembro com clareza que horas antes da sua morte, resolvi cantar ao pé do ouvido de minha mãe as músicas que ela gostava e aquilo acalmou claramente o seu coração. Eu deveria, talvez, ter cantado nos outros dias. Não sei. Optei que ela ficasse no quarto e pudesse morrer conosco, e foi o que aconteceu. Ela morreu de mãos dadas comigo e não sozinha em uma cama de UTI. Apesar de no fim de sua vida não ter tido o tratamento que desse mais vida e não mais dias, ela morreu com o calor de nosso amor, morreu cercada por quem a amava e hoje sente saudades. Acredito que tudo isso fez parte de planos maiores que desconheço por completo. Mesmo sendo cedo, posso dizer que a parte da medicina de cuidados paliativos muito me atraí, porque ter perdido minha mãe me fez não ter problemas a falar abertamente sobre a morte.
    Não sou contra o tratamento, uma pessoa que merece uma morte com qualidade, merece da mesma forma tratamento até o último momento de vida. Sou contra o tratamento que desmerece a ação da natureza na progressão da morte de uma pessoa. Sou contra toda a intervenção que não alivia a dor e só prorroga o sofrimento. Sou contra quem pensa como eu, mas nega tratamento curativo quando o paciente ou a a família solicitam que seja assim. A opinião do paciente sempre prevalece. Porém, temos ainda muito enraizado na nossa sociedade que a única ação de cura obstinada é efetiva e de qualidade, se o médico oferece a possibilidade de uma qualidade de vida mais digna e uma morte mais tranquila ele está se negando a fazer tudo que deve ser feito. Só que até que ponto há esse limite?
    Qual é o limite de uma vida boa e o limite de uma vida que não é mais de qualidade e prazerosa ao paciente? Lembro-me que quando questionei minha mãe, semanas antes de sua morte, sobre o fato de que se a morte fosse o remédio para todo aquele sofrimento desgraçado ela aceitaria. Com poucas palavras e certo tom de pesar, ela me respondeu que sim, porque aquela vida não era mais a vida que ela sonhou em ter, nem tampouco, sonhou morrer daquele jeito. Vai dizer que você nunca imaginou sua morte como ir dormir e nunca mais acordar? Eu muitas vezes me pego pensando qual tipo de morte eu terei? Quero uma que seja aquele tipo de morte vivendo.
    É tão bonito no filme quando a mocinha descobre uma doença terminal e resolve viajar pelo mundo a fim de realizar os últimos sonhos dela...no filme é bonito. A questão não é o morrer, é o aceitar como algo que acontece na vida, seja na vida de jovens, adultos, idosos ou até mesmo crianças. Além do mais, a minha visão pessoal de mundo me faz acreditar que existe alguém soberano que diante sua vontade dá ou tira a vida conforme o plano assim proposto por Ele. Se a vida é um milagre, morrer dignamente é outro maravilhoso milagre também. Há uma esperança na morte que essa vida terrena nunca poderá garantir. E no fim, a morte só é um problema pra quem não sabe onde vai chegar depois dela.  

Uma música que lembra a minha mãe e toda a luta contra o câncer que durou 3 anos e meio. Sinto saudades, hoje já não dói, a ferida cicatrizou. E hoje olho para a cicatriz e vejo o quanto ela ensinou e ainda ensinará. O fato é que a  morte ensina aqueles que com ela querem aprender, pois não há remédio para ela, só fica a saudade e aquilo que nos concedemos a aprender.

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